- Perguntas-me o que é que me fizeste, velho Wang-Fô? - recomeçou o Imperador, inclinando o pescoço encarquilhado para o velho que o ouvia. - Vou dizer-to. O meu pai reuniu uma colecção de pinturas tuas no fundo do palácio, e foi nessas imensas salas que eu fui criado, velho Wang-Fô, porque não me deixavam sair, com medo de que ver os infelizes me afligisse o espírito ou agitasse o coração. Tirando um ou outro velho criado que aparecia o menos possível, a ninguém mais era permitido entrar nos meus domínios, não fosse conspurcar-me com a sombra de quem passasse. De noite, quando não conseguia dormir, ficava a olhar para os teus quadros, e, durante dez anos, não houve uma só noite em que eu não os tenha contemplado. De dia, sentado num tapete de que já sabia de cor todos os desenhos, descansando as mãos nos meus joelhos de seda amarela, eu imaginava o mundo - com o país de Han no meio - semelhante à planície côncava e monótona da mão profundamente atravessada pelos Cinco Rios. A toda a sua volta, o mar onde os monstros nascem e, mais longe ainda, as montanhas onde assenta o céu. Tudo isto eu imaginava com a ajuda dos teus quadros. Aos dezasseis anos, reabriarm-me as portas que me separavam do mundo; subi ao terraço do palácio para ver as nuvens, mas elas não se comparavam com as dos teus crepúsculos. Mandei vir uma liteira; sacudido através de estradas atulhadas de lama e de pedras com que eu não contava, percorri as províncias do Império sem encontrar os teus jardins repletos de mulheres parecidas com flores e as tuas florestas cheias de antílopes e de pássaros. Os calhaus da beira-mar fizeram com que eu me enjoasse dos oceanos; a fealdade das aldeias impede-me de ver a beleza dos arrozais, e o riso áspero dos meus soldados dá-me vómitos. Mentiste-me, Wang-Fô, velho aldrabão: o reino de Han não é o mais maravilhoso dos reinos e não sou eu o Imperador. O único império onde vale a pena reinar é aquele onde tu entras, velho Wang, pelo caminho das Mil Curvas e das Dez Mil Cores. Só tu reinas em paz sobre planícies onde a neve não derrete e sobre campos de flores que nunca morrerão. E é por isso, Wang-Fô, que eu encontrei o suplício que te estava reservado, a ti cujas pinturas me fizeram detestar o que possuo, e desejar o que jamais possuirei. E, para te fechar na única prisão de onde não poderás sair, decidi queimar-te os olhos, já que os teus olhos são as duas portas mágicas por onde tu penetras no teu reino. E, já que as tuas mãos são as duas estradas de dez ramificações que vão até ao coração do teu império, também decidi cortar-te as mãos. Percebes tu agora, velho Wang-Fô?
Marguerite Yourcenar
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